sábado, 8 de maio de 2010

A história do boneco de sal,


A invés de crescer para fora, podemos crescer para dentro na medida em que criamos um centro onde as coisas se unificam e descobrimos como de tudo podemos aprender.

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por Leonardo Boff*


Nos últimos tempos, temos dedicado nossas reflexões quase que exclusivamente às questões ambientais e aos desafios que as mudanças climáticas implicam para o futuro de nossa civilização, para a produção e o consumo.

Nem por isso devemos descurar os problemas cotidianos, a construção continuada de nossa identidade e a moldagem de nosso sentido de ser. É uma tarefa nunca terminada. Entre muitas, duas provocações estão sempre presentes e temos que dar conta delas: a aceitação dos próprios limites e a capacidade de desapegar-se.

Todos vivemos dentro de um arranjo existencial que, por sua própria natureza, é limitado em possibilidades e nos impõe barreiras de toda ordem, de lugar, de profissão, de inteligência, de saúde, de economia, de tempo. Há sempre um descompasso entre o desejo e sua realização. E, às vezes, nos sentimos impotentes face a dados que não podemos mudar, como a presença de um esquizofrênico com seus altos e baixos ou um doente terminal. Temos que nos resignar face a esta limitação intransferível. Nem por isso precisamos viver tristes ou impedidos de crescer. Há que ser criativamente resignados. A invés de crescer para fora, podemos crescer para dentro na medida em que criamos um centro onde as coisas se unificam e descobrimos como de tudo podemos aprender. Bem dizia a sabedoria oriental: “Se alguém sente profundamente o outro, este o perceberá mesmo que esteja a milhares de quilômetros de distância”. Se te modificares em teu centro, nascerá em ti uma fonte de luz que irradiará para os outros.

A outra tarefa da autorrealização é a capacidade de desapegar-se. O zen-budismo coloca como teste de maturidade pessoal e liberdade interior a capacidade de desapegar-se e de despedir-se. Se observamos bem, o desapego pertence à lógica da vida: despedimo-nos do ventre materno; em seguida, da meninice, da juventude, da escola, da casa paterna, de parentes e da pessoa amada. Na idade adulta, despedimo-nos de trabalhos, de profissões, do vigor do corpo e da lucidez da mente que irrefregavelmente vão se desgastando até despedirmo-nos da própria vida. Nestas despedidas, deixamos um pouco de nós mesmos para trás.

Qual é o sentido deste lento despedir-se do mundo? Mera fatalidade irreformável da lei universal da entropia? Essa dimensão é irrecusável. Mas será que ela não guarda um sentido existencial, a ser buscado pelo espírito? Se, fenomenologicamente, somos um projeto infinito e um vazio abissal que clama por plenitude, será que esse desapegar-se não significa criar as condições para que um Maior nos venha preencher? Não seria o Supremo Ser, feito de amor e bondade, que nos vai tirando tudo para que possamos ganhar tudo, no além vida, quando nossa busca finalmente descansará?

Ao perder, ganhamos e ao esvaziarmo-nos, ficamos plenos. Dizem por aí que esta foi a trajetória de Jesus, de Buda, de Francisco de Assis, de Gandhi, de Madre Teresa e de outros.

Talvez um história dos mestres espirituais antigos nos esclareça o sentido da perda que produz um ganho. “Era uma vez um boneco de sal. Após peregrinar por terras áridas, chegou a descobrir o mar que nunca vira antes e por isso não conseguia comprendê-lo. Perguntou o boneco de sal: “Quem és tu?” E o mar respondeu: “Eu sou o mar”. Tornou o boneco de sal: “Mas que é o mar?” E o mar respondeu: “Sou eu”. “Não entendo”, disse o boneco de sal. “Mas gostaria muito de compreender-te; como faço?” O mar simplesmente respondeu: “Toca-me”. Então o boneco de sal, timidamente, tocou o mar com a ponta dos dedos do pé. Percebeu que aquilo começou a ser compreensível. Mas logo se deu conta de que haviam desaparecido as pontas dos pés. “Ó mar, veja o que fizeste comigo”. E o mar respondeu: “Tu deste alguma coisa de ti e eu te dei compreensão; tens que te dares todo para me compreender todo”. E o boneco de sal começou a entrar lentamente mar adentro, devagar e solene, como quem vai fazer a coisa mais importante de sua vida. E na medida wm que ia entrando, ia também se diluindo e compreendendo cada vez mais o mar.

E o boneco continuava perguntando: “Que é o mar”. Até que uma onda o cobriu totalmente. Pôde ainda dizer, no último momento, antes de diluir-se no mar: “Sou eu”. Desapegou-se de tudo e ganhou tudo: o verdadeiro eu.

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