terça-feira, 22 de junho de 2010

Os cidadãos do terceiro tempo.


A bola da vez é a bola. O sol da terra!O cenário da Copa do Mundo, enquanto manifestação cultural, sempre nos instiga a alguns questionamentos, sobretudo ao observarmos a magnitude de um evento outrora restrito ao estádio, agora em sua esfera cada vez mais mercantil e midiatizada.

No entanto, um dos princípios fundamentais, talvez esquecido pela produção midiática da Copa 2010, é o reconhecimento das diferenças culturais e econômicas que fundamentam a realidade, bem como a expressão da subjetividade do seu público, tanto o torcedor quanto o telespectador. Evidencia-se que o único critério de noticiabilidade é a surpresa e o detalhe hiper-reprisado, como o super close no tornozelo torcido de um jogador, ou a comemoração esquisita de algum fanático nas arquibancadas. Pelas objetivas digitais, registram-se e remodelam-se identidades que são concebidas na expressão de distintas raças, gêneros e etnias, especialmente quando construídas sob as lágrimas da vitória, mas, sobretudo as da derrota.

Em outras palavras, os processos de midiatização da Copa 2010 dinamizam os espaços de publicização das identidades culturais, especialmente através de imagens que estampam as cores e símbolos de uma nação, trazendo à tona o deslumbrar de uma memória socialmente construída, como nos lembra Stuart Hall. Nesse sentido, o espaço midiático efetiva-se como um canal onde muitos valores e produtos são legitimados, na maioria das vezes sem a intervenção ativa dos telespectadores: a oferta midiática é sempre maior do que a demanda do receptor, alerta Dominique Wolton.

Mão dupla

Mas qual a intenção dessa midiatização cultural-identitária? Em que medida o público, tanto o telespectador como o midiatizado, pode considerar-se cidadão nesse espaço?

Não podemos deixar de destacar os interesses comerciais, de marketing, venda e autopromoção das grandes multinacionais. Porém, todas acionam o discurso nacionalista, dependendo da tela em que aparecem: as marcas européias, asiáticas e norte-americanas são agora fanáticas pela seleção verde e amarela. Nessa época, a incitação ao consumo beira o extremo. Aproveitam nossa sensibilidade à flor de uma pele que treme frente à tela na espera de seu time. Não pretendemos com esse discurso neutralizar o papel do mercado, mas evidenciá-lo a partir de uma perspectiva crítica, que leve em consideração a complexidade dos valores contidos nessas trocas e construções identitárias e culturais.

Obviamente, os grandes grupos midiáticos precisam de patrocinadores que assegurem economicamente suas programações, como tais patrocinadores necessitam da mídia para que sua produção seja socialmente visualizada: a relação é de mão dupla. O telespectador é chamado apenas para o terceiro tempo, o do consumo – ou seja, o da pós-produção.

Valores e culturas

A midiatização das diversas culturas facilitada pela Copa do Mundo deve ir além de uma intenção estritamente mercantil ou publicitária. Como afirma Nestor G. Canclini, as relações que movimentam a produção e o consumo mercantil devem ser compreendidas a partir da complexidade das realidades multiculturais. Para Canclini, a prática da cidadania passa também pelo consumo, mas não apenas pelo consumo midiático, ou o que se efetiva no campo do terceiro tempo. Isso nos leva a considerar que este espaço midiático-mercantil não é autossuficiente para o consumo cidadão, visto que a cidadania – nessa perspectiva – é limitada, pois ocorre muitas vezes por vias desiguais de aquisição como de demanda.

Herbert de Souza, o Betinho, pontua que "o termômetro que mede a democracia em uma sociedade é o mesmo que mede a participação dos cidadãos na comunicação". Assim, que seja concedida voz a esse público que também almeja ser cidadão ao expressar seus valores, culturas e identificações, não apenas no terceiro tempo, mas enquanto o jogo é jogado. Quem sabe um dia, a Copa do Mundo midiatizada constitua-se como um espaço onde o cidadão seja mais do que um fanático torcedor.

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